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9 de fevereiro de 2010

Quem ganhará no "Mortal Kombat do Cosme Velho": o pseudo-morto ou o pseudo-corno?

Hoje eu vi um trailer de um jogo para PC chamado “Dante’s Inferno”. Achei que fosse uma tosqueira catastrófica feito aquele filme de vulcão que tinha esse nome e, para meu espanto, lá está Beatriz sendo arrastada pras Profunda Duzinférno e um Dante porradeiro pulando lá pra dentro, pronto para salvar sua amada das mão do Capiroto em pessoa. Obviamente, sentando o sarrafo em tudo que vê pela frente.

Rapaz, o negócio é interessante, pelo que vi o jogo começa com o Dante Norris nel mezzo del camin dessa vida porqueira, se ritrovando por uma selva oscura, e tá lá até o lasciate ogni speranza vuoi ch’entrate. Os cenários são pavorosos, o Círculo da Luxúria deixaria a pirralhada consumidora de hentai com medo de buceta pro resto da vida, e Cérbero e o Rei Minos dariam pesadelo a qualquer estudioso do Florentino de Jesus. Só senti falta de um Virgílio dobrado armado de metralhadora e bazuca, com cartucheiras cruzando o peito sobre a toga e um charuto de marine americano no canto da boca. Mas tudo bem. Do jeito que vai, é capaz até de um dia rolar cosplay de Francesca da Rimini. Ora essa, é preciso reciclar os clássicos para a juventude lan house, é ou não é?

Mas é claro que é!!! Embora haja um ou outro “estudioso” da literatura que considere que até recital hoje em dia é desrespeito, transformar a literatura em videogame seria um arejamento mental incrível para esses rapazolas. Quer dizer, quase incrível. Uns ou outros deveriam mais era aguardar ansiosos por uma Playboy literária (aí, já temos a Fernanda Young pros rapazes escreverem umas teses no banheiro!). Imaginem só que incentivo nos colégios isso seria? Uma “Ilíada” versão-massive-multiplayer-RPG-do-cacete-a-quatro? O livro já é um World of Warcraft em grego, mesmo. E olha que eu sempre achei “Worms” um tanto quanto Kafkiano, apesar de ter minhocas e não baratas ou coisa que o valha. Bem, angustia geral do mesmo jeito.

Um sucesso estrondoso seria videogamizar Shakespeare. Afinal, segundo Harold Bloom, Shakespeare “é uma espécie de Pac-Man para a literatura moderna” (in “O Cânone Ocidental”, p. 14, 22, 76, 124 e da p. 172 até o fim do livro). Imagina só, “Prince of Denmark”! Hamlet encontra o Príncipe da Pérsia! Garanto logo, a luta com o chefão final, o Rei Claudius, seria muito dura, uma vez que ele ficaria gigante e teria uma espada de fogo de dez metros. Você o derrota com o lança-mísseis que ganha após matar Laertes. E ainda pode jogar com personagens escondidos, como Horatio (um ladino de Carisma baixa, mas hábil em Ataque Furtivo), Macbeth (que tem “damage reduction” contra homens que não nasceram de mulher) e Prospero, que é feiticeiro e lança bolas de fogo +10 e invoca Ariel, Caliban e o Dragão Cromático Mítico das Profundezas Nível Épico.

Ora, nesse espírito de coisas, dois e meio de meus onze vírgula vinte e cinco leitores (excluindo-se o Sullustano, que sei que é conservador – e não o culpo por isso) podem estar perguntando a seus botões: “ora essa, e por que não elaborar projetos voltados à literatura brasileira e utilizá-las como ferramenta de ensino nos colégios, para incentivar a leitura em sala de aula?” Antes que o Grupo de Operações Táticas da ABL surja atravessando os vidros de suas janelas com armas de tranquilizante e camisas de força, eu digo: é, por que não?

Eu já tinha aventado essa hipótese com um grande bróder meu, o Adonai (grande Adonai, nunca mais vi, deve ter sido recolhido para análise pelo GOTABL), e ele havia se questionado sobre a validade dessa iniciativa. E, óbvio, achou lindo! Por exemplo, que tal uma versão GTA para “Capitães de Areia”, do Jorge Amado? Não é mais interessante jogar como líder de um grupo de trombadinhas júnior nas ruas de Salvador do que como um gangsta rapper no Bronx? Ariano Suassuna concordaria em gênero-número-e-degrau.

E, para os fãs de João Guimarães Rosa, nada melhor do que a mais perfeita experiência de imersão em sua linguagem oferecida por “Counter-Strike: veredas”:

– Sinta na pele toda a experiência de estar cara-a-cara com o Liso do Sussuarão!

– Escolha o seu lado: Joca Ramiro ou Hermógenes!

– Experimente todo o poder de fogo de Riobaldo, o Tatarana, o Aratu Branco, usando espingardas, bacamartes, révolveres, um rifle de precisão, granadas de mão e até mesmo um lançador de foguetes afegão!

– Missão de tutorial exclusiva, com narração de meu compadre Quelemém!

– Manual on-line escrito por João Guimarães Rosa!

Cara, deu até vontade de jogar. Era a gota que faltava para a biblioteca de sua faculdade de Letras virar uma lan house. E, para compeltar o pacote, por que não resgatar um antigo sucesso que fez muitos românticos, realistas, parnasianos e pré-modernistas torrarem seus mil-réis nos fliperamas da Confeitaria Colombo no nosso prolífico “fin de siècle”? Sim, meus queridos, isso foi real. Tão real que deu origem a todos os Street Fighters da vida.

Foi o “Mortal Kombat do Cosme Velho”. E isso foi sério.

Foi um marco na história da indústria editorial. Não pensem vocês que o desenvolvimento da literatura brasileira nesse momento, pelo menos no que diz respeito ao desenvolvimento e consumo de romances, se prendia ao folhetim semanal para senhoritas bordadeiras. Nada disso. Os janotas se aglomeravam para jogar partidas e mais partidas deste revolucionário jogo. A citação favorita dos intelectuais não era “melhor cair das nuvens que do terceiro andar” e sim “Round… one… FIGHT!”. E claro, ao vencedor, sempre cabiam as batatas.

Lutas fenomenais em cenários interativos, nos quais você podia jogar o adversário na frente de uma caleche… como a Rua do Ouvidor, com suas estacas afiadas esperando por um fatality… E o que dizer de Marcela, a precursora de Chun-Li e similares? Nada melhor do que finalmente realizar um duelo entre Quincas Borba e Simão Bacamarte, o alienista! Ou quem sabe vingar Bentinho e fazê-lo surrar Escobar? Ou surrar Capitu? Ou ser surrado por Brás Cubas? Ou ser surrado por todo mundo porque ô personagem lamentoso e, enfim, casmurro, de torrar o saquinho que ele é, benzadeus!

E, ah sim, reza a lenda – ninguém conseguiu comprová-la até hoje, é que nem o peixinho que aparecia em “Frostbite” no Atari – que, se você ganhasse de nocaute trezentas e doze lutas seguidas com o mesmo personagem, seria liberado um combate com dois personagens secretos: Machado de Assis e José de Alencar. Às portas da Igreja do Diabo. E numa ponte suspensa sobre azeite fervendo. É, todo mundo sabia que essa animosidade poderia render um fatality, muito cavalheirescamente, diga-se de passagem.

Não é uma coisa bonita? E parece que ainda exportamos a ideia, não só para os americanos e japoneses, mas como para os portugueses também, que tinham em seus cafés ao longo do Chiado um fliperzinho chamado “Pugilista de Bulevar” (em bom português, “Street Fighter”), em que Carlos da Maia pod’ria sovar os cornos do Primo Basílio, o Padre Amaro levaria umas bengaladas de Jacinto de Tormes e, dizem, você poderia sentar a mão em Teodorico Raposo jogando como sua inefável Titi.

Estão vendo só como funciona? Sabe, eu estou ansioso em experimentar o “Dante’s Inferno”,  o primeiro videogame em “terza rima” da história.  Agora, a grande pergunta é: quando farão jus a esse nobre personagem de gerações e gerações, de influências homéricas, dantescas e virgilianas, e darão ao Super Mario sua tão merecida epopéia em versos heróicos?! O desafio tá lançado. FIGHT!

Foto-montagem: Niti Merhej